DOIS
Quando finalmente
me dei conta, o Nada já estava sentado ao meu lado. Disse-me alguma coisa que
não consigo lembrar o que é, respondi algo que também não lembro. Daquele
momento as únicas coisas de que tenho lembranças são dele ter pego a garrafa
da minha mão, ter dado um grande gole, e dizer:
“Então, me beije!”
Como um autômato, sem poder avaliar o que
estava fazendo, o beijei. Entretanto, não fora um ato puramente mecânico, o fiz
como nunca tinha feito com ninguém. O beijei com volúpia, gana, vontade. Pude
sentir a vida correndo de um lábio ao outro que não existia, pela primeira vez,
desde meu primeiro beijo, me entreguei como um recém-nascido se entrega sequioso
a doce auréola do seio de sua mãe. Os poucos segundos que duraram esse beijo,
foram eternos. Eu não possuía corpo, alma. Eu era apenas energia.
Estava completamente envolvido naquilo,
os meus olhos fechados me mostravam todos os detalhes do Nada, pude definir o
som que ouvia. Aquele som grave e continuo era as batidas do meu coração que
acelerava cada vez mais. Tive a sensação de ser onipotente, experimentei uma
felicidade incrível, coisa alguma, nem ninguém, poderia me tirar isso. Senti-me
um imortal, um deus.
Quando o beijo acabou demorei um pouco
para reajustar minha respiração, eu tremia como um filhote assustado. Ao abrir
os olhos, deparei-me com uma noite tão clara quanto um dia de verão. O Nada
começou a falar-me sobre coisas sem sentido ou importância, frívolas e sem
nexo.
Eu estava apavorado com tudo aquilo que
acabara de acontecer. Tentei disfarçar, mas não conseguia. E ante aquele medo imoto
e quedo, dei uma desculpa qualquer e parti. Durante o caminho não pude
coordenar meu próprio raciocino.
Quando cheguei ao meu destino,
procurando a chave da porta nos bolsos da minha calça velha e surrada, um receio
profundo e repentino me abateu. Tive vontade de correr, de gritar, de chorar,
entretanto, tudo o que fiz foi respirar fundo e prometer a mim mesmo que não
cairia numa trama do destino sempre perverso. Encontrei a chave, enfiei-a na
fechadura, girei-a. Antes que eu tivesse tempo de pegar na maçaneta, a porta
começou a abrir-se. Não sei por qual motivo, não pude escancará-la e entrar de
uma vez. Ela foi abrindo-se aos poucos, o ranger agudo das dobradiças me fizeram
arrepiar inteiro, estremeci.
Pude sentir o bafo quente e seco que
vinha de dentro. Entrei com passos leves e contidos. O lugar não parecia com
aquele em que eu estava horas antes e no qual eu tinha passado boa parte de
minha vida. Todas aquelas paredes, corredores, cômodos, antes tão alegres,
seguros, amigos, agora pareciam lúgubres, tristes, repletos de uma eloquência e
nostalgia que eu desconhecia existir. Havia muita saudade. Saudades de um tempo
que já se foi, que se passou e que não voltará mais.
Aquele lugar, antes tão amigo, que
guardava todos os meus segredos, agora tinha se tornado meu inquisidor, me
apontava, acusava. Sentia-me acuado!
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